sexta-feira, 27 de março de 2015

O dogma da Imaculada Conceição de Maria.



I. DEFINIÇÃO E EXPLICAÇÃO

O Papa Pio IX, na bula Ineffabilis Deus, em 8 de dezembro de 1854, declarou como dogma da Igreja e artigo de fé o seguinte: “Ë de Deus revelada a doutrina que sustenta que a bem-aventurada Virgem Maria, no primeiro instante de sua conceição, por singular graça e privilégio do Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, o Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado original, e dessa maneira deve ser onda firme e constantemente por todos os fiéis.”

Os apologistas do dogma não dizem que Maria foi milagrosamente concebida, sendo que ela teve seus país naturais. São Joaquim e Santa Ana afirmam, sim, que ela nasceu sem pecado original, entendendo-se que este consiste na privação da graça sobrenatural imerecida, graça que Adão e Eva tiveram a principio, mas que perderam por sua desobediência.

O pecado original consiste, segundo a doutrina católica, em que todos os seres humanos, por descendermos de nossos pais Adão e Eva, nascemos privados dessa graça santificante, e, dessa maneira, é congênita em nós a tendência para o mal. Maria participou, no entanto, de algumas das consequências do pecado de Adão; esteve incluída na sentença adâmica, incorreu na dúvida, como todos os demais, e não esteve isenta da morte; mas foi ela redimida por antecipação, em vista dos feitos de seu próprio Filho e pela abundância da bondade de Deus.

Convém observar que, com a promulgação deste dogma papal, o primeiro em 18 séculos e meio, Pio IX pôs termo a uma controvérsia que havia abrangido várias centúrias e que implicava numa ameaça de divisão nas filas romanistas. A decisão do Papa adotada por ele e perante ele chegou a ser por isso mesmo uma medida prática e oportuna e deixou bem clara a consolidação das pretensões do papado, de absoluta autoridade sobre os Concílios Gerais e sobre a Igreja toda. Apenas 16 anos depois, este mesmo Papa haveria de decretar, no Concilio Vaticano I, o dogma da infalibilidade papal.

II. HISTÓRIA

No catolicismo, culto à Imaculada Conceição de Maria está muito difundido. A dita festa começou a celebrar-se já no século XII, muito antes da proclamação do dogma. Uma lenda atribui sua origem à ordem dada por um varão resplandecente, o qual, havendo aparecido a um abade inglês, de nome Elpino, que se achava em perigo de naufragar no marcom os seus companheiros,”… disse-lhes que prometessem a Deus guardar cada ano a festa da Conceição de nossa Senhora, e de exortar a outros que aguardassem ,e que desta maneira sairiam daquele perigo e chegariam ao porto desejado”. (1)

Em 1140 a festa da Imaculada Conceição foi estabelecida pela primeira vez por alguns cônegos de Lyon, França, os quais foram duramente censurados pelo famoso São Bernardo como iniciadores de tal novidade. A este respeito, a Enciclopédia de La Religion Católica diz: “Ao introduzir-se a festa em Lyon soou a voz da oposição nada menos que de São Bernardo, por outra parte tão grande Mariólogo; e sua autoridade atraiu outros ao seu parecer.” (2)

Na celebração desta festa, os católicos aplicam a Maria certas expressões de Cântico dos Cânticos, como as seguintes: “Tu és toda formosa, amada minha, e em ti não há mancha”; “Jardim fechado é minha irmã, minha noiva, sim, jardim fechado, fonte selada”; “Mas uma só é a minha pomba, a minha imaculada; ela é a única. .. a escolhida” (Cant.4:7, 12; 6:9).

Durante onze séculos a crença nesta doutrina foi desconhecida na igreja cristã. Encontramos o primeiro vestígio dela nos meados do século XII, com a instituição da festa, à qual nos referimos anteriormente. Apesar de se celebrar na Igreja Oriental desde o ano 880 uma festa da Conceição em cada 9 de dezembro, esta, no entanto, era só para celebrar o caráter milagroso de Maria, já que sua mãe Ana era estéril (segundo uma lenda apócrifa). A idéia da Imaculada Conceição se foi estendendo, mas de igual modo cresceu a oposição, a ponto de desenvolver-se uma acesa e ampla controvérsia, na qual apaixonadamente intervieram escolas de pensamento, ordens religiosas, igrejas nacionais e proeminentes líderes. Principais contendentes na batalha foram os franciscanos, que, com seu mestre Juan Duns Escotus, defendiam a Imaculada Conceição, enquanto os dominicanos, com Tomás de Aquino os encabeçando, a negavam.

O Concílio de Trento, que decretou como artigos de fé muitas das superstições medievais, se absteve, no entanto, de promulgar este novo dogma, claro indício de que, à altura do ano 1545, a tal crença não contava ainda com o apoio universal. Foi necessário que transcorressem dezoito séculos e meio para que a Imaculada Conceição ingressasse oficialmente no credo católico romano. Com efeito, o Papa Pio IX publicou em 2 de fevereiro de 1849 uma Encíclica, a fim de que todos os bispos expressassem sua opinião a respeito, e, ainda que muitos deles se pronunciassem contra. Posteriormente o Papa declarou como novo dogma da Igreja Católica Romana, na presença de 54 cardeais e 140 bispos, a Imaculada Conceição de Maria.

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(1) P. Pedro de Ribadeneyra, Vida de ia Gloriosa Virgen Maria, p. 81.

(2) Tomo II, art. “Conceição Imaculada da Santissima Virgem”.

III. DEFESA ROMANISTA


Revisando a linha de argumentos invocados em defesa deste dogma, salta à vista que são três os setores em que poderiam ser classificados: tradição, Biblia e filosofia. Vejamo-los nessa ordem.

1. Tradição Patrística


Quanto a este ponto, se alega que os primeiros Pais expressaram–se em termos altamente elogiosos sobre a pureza de Maria, do que resulta incongruente o fato de ela ter sido manchada com o pecado original. Maria é mencionada como “a segunda Eva – que, por sua descendência, chegou a ser a causa da sua própria morte e da raça humana – pois também Maria, levando em seu seio o Homem predestinado, e sendo, no entanto, uma virgem, por sua obediência, chegou a ser, tanto para ela mesma como para todo o gênero humano, a causa de salvação.” (1)

Santo Efrém, um dos Pais sírios do século IV, dedica uma prece a Maria, na qual a invoca como “Virgem, Senhora, Mãe de Deus… Santíssima e benigníssima Senhora”, que foi “…eleita como a mais sublime de todas gerações da terra”. E acrescenta: “Bem-aventurada és por todos os séculos, gratíssima a Deus, mais resplandescente que os querubins, e mais gloriosa que os serafins.” (2)

Certo é que há outros Pais e doutores da Igreja que ponderam a dignidade, a beleza e a graça de Maria, mas ainda que se pudesse entender que alguns desses elogios favorecem implicitamente a crença na Imaculada Conceição, não se pode, no entanto, afirmar que o digam.

2. Argumento Bíblico

Como base bíblica deste dogma citam-se as palavras do Proto-evangelho, a saber, as ditas por Jeová Deus à serpente em Gênesis 3:15, e as da saudação angélica em Lucas 1:28. Nestas passagens, no entanto, o argumento não está explícito, senão que simplesmente se deduz.

Na elaboração de sua exegese, os defensores da Imaculada se valem da Versão Latina do Padre Jerônimo, onde se diz que a mulher esmagará a cabeça da serpente. Logo, seu raciocínio é que, se neste versículo se faz referência à mulher, que não é outra senão Maria, a promessa de que ela vencerá o diabo quer dizer que o pecado não se assenhoreará dela nem sequer por um instante, e, portanto, ela foi preservada de toda mancha desde o momento de sua concepção.

Quanto à passagem de Lucas, a Vulgata traduz as palavras do anjo Gabriel a Maria assim: “Ave Maria, gratia plena…”, isto é, “cheia de graça”, do que se estabelece que, havendo Maria sido cheia de graça, era impossível que ela alguma vez houvesse cometido pecado, resultando disso sua imaculada Conceição.

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(1) Against Heresles, til, 22:4; Translations of the Writings of the Fathers, p. 36, Ed. pelo Rev. Alexander Aoberts e James Donaldson, Vol. V, Edinburg: T. and T. Clark, 38, George Street, 1868.

(2) Los Santos Padres, Edições Desclée, De Brouwer, Buenos Aires, 1946, Tomo II, p. 448.

3. Razões de Conveniência

Segundo este ponto, era muito conveniente que a mãe do Senhor fosse preservada do pecado original, e desta conveniência se deduz que assim sucedeu. Se argumentam como razões as seguintes:

1) Maria foi a filha primogênita de Deus. A fim de substanciar esta asseveração, os teólogos do romanismo aplicam a Maria o que a sabedoria personificada diz de si mesma. Por exemplo: “Eu saí da boca do Altíssimo, a primogênita antes de todas as criaturas” (Eclesiástico 24:5). “O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos, desde o principio, antes que criasse coisa alguma” (Prov. 8:22, versão católica).

2) O Pai Eterno a destinou para que fosse a reparadora do mundo e a medianeira de paz entre Deus e os homens.

3) Maria havia sido destinada por Deus para ser a mãe de seu Filho unigênito.

IV. REFUTAÇÃO EVANGÉLICA

1. Precisa de uma Consistente Tradição Eclesiástica

O fio da tradição é realmente pouco resistente para sustentar o tão grande peso deste dogma. O fato é que os Pais primitivos da Igreja não creram na Imaculada Conceição nem dela falaram. Os testemunhos citados a favor desta crença (lrineu, Santo Efrém e Santo Agostinho) se poderia dizer que a apóiam, só por contradição, e ainda isto é duvidoso. A evidência é clara de que os principais Pais não creram na impecabilidade de Maria.

Juan Duns Escoto (1265-1308), o mais hábil dialético de todos os escolásticos e opositor teológico de Tomás de Aquino, é conhecido como defensor da tese concepcionista; no entanto, o Dicionário Católico em inglês A Catholic Dictionary, William E. Addis e Thomas Arnold diz o seguinte: “Juan Duns Escoto dá sua própria opinião a favor da imaculada conceição com uma tal timidez, que claramente revela seu conhecimento de que a opinião geral estava do outro lado. Depois de sustentar que Deus poderia, se quisesse, haver isentado a bendita Virgem do pecado original, por outro lado, poderia ter permitido a ela permanecer debaixo dele por um tempo e então havê-la purificado. Acrescenta ele (Juan Escoto) que “Deus sabe” qual destas duas possíveis maneiras foi realmente tomada; “…mas se não é contrário à autoridade da Igreja ou dos santos, parece recomendável (probabile) atribuir aquilo que é mais excelente a Maria.”

No ponto número três do artigo em referência o autor do mesmo acrescenta: “Petavius – justamente, segundo cremos – repudia muitas passagens dos Pais, que citamos em apoio da doutrina. Ele faz notar que, se os Pais falam de Maria como “sem mancha”, “incorrupta”, “imaculada”, de nenhuma maneira se entende que eles creram que ela foi imaculadamente concebida.”

A amarga e odiosa controvérsia entre tomistas e escotistas sobre o assunto da Imaculada Conceição, além de constituir um espetáculo pouco edificante no seio da Igreja, é uma prova mais do que irregular da tradição invocada.

A. Rejeitada por Pais e Doutores da Igreja

São muitos os testemunhos que se acham nos escritos dos Pais e doutores que, por um lado, corroboram a impecabilidade de Cristo e, por outro, admitem a participação que Maria teve, igualmente com todos os homens, no pecado original da raça humana. Desta maneira, o tão apetecido “consentimento unânime dos Pais” se levanta antes contra a idéia de imaculada conceição que a favor dela. Citamos os mais importantes.

Eusébio de Cesaréia (265-340): “Ninguém está isento da mancha do pecado original, nem mesmo a mãe do Redentor do mundo. Só Jesus achou-se isento da lei do pecado, mesmo tendo nascido de uma mulher sujeita ao pecado.” (1)

Santo Ambrósio, Doutor da Igreja e Bispo de Milão (século IV), comentando Salmos 118: “Jesus foi o único a quem os laços do pecado não venceram; nenhuma criatura concebida pelo contato do homem e da mulher foi isenta do pecado original; só foi isento Aquele que foi concebido sem esse contato e de uma virgem, por obra do Espírito Santo.” (2)
Santo Agostinho, Doutor da Igreja (354-430), comentando Salmos 34:3, diz: “Maria, filha de Adão, morreu por causa do pecado; e a carne do Senhor, nascida de Maria, morreu para apagar o pecado.” (3)

(4) Os Escolásticos

Transcrevemos integralmente duas citações de obras católicas romanas: “Em certo estado de desenvolvimento, a questão foi estudada pelos escolásticos e, coisa rara, quase todos creram que a doutrina da imaculada não estava em harmonia com a universidade do pecado original e da redenção. Sto. Anselmo, Sto. Alberto, Pedro Lombardo, Alexandre de Hales, São Boaventura, Santo Alberto Magno e São Tomás, ainda que ternamente devotos da Mãe de Deus e prontos a defender seus muitos privilégios, contudo, ensinaram que havia sido concebida em pecado original.” “Entretanto, ainda que os escolásticos mais conspícuos antes do século XIV se opusessem terminantemente à Imaculada Conceição, não faltaram outros, de menos fama, que com igual resolução defenderam esta prerrogativa da Virgem por todos os meios que estavam ao seu alcance.” (4)

“No século XIII, a época da escolástica, vem ao nosso encontro o fato surpreendente de que a maioria dos grandes teólogos se declara bem explicitamente contra a Conceição Imaculada. Da mesma maneira Alexandre de Hales, o próprio São Tomás nas passagens autênticas, Sto. Alberto Magno, São Boaventura, Juan de la Rochelle, Pedro de Tarentasia, Henrique de Gante, Egidio, Romano, etc.” (5)

a) Sto. Anselmo, Doutor da Igreja, Arcebispo de Canterbury (1033-1109) disse a respeito:

“Mesmo sendo Imaculada a Conceição de Cristo, não obstante a mesma virgem, da qual ele nasceu, foi concebida na Iniqüidade e nasceu com o pecado original, porque ela pecou em Adão, assim como por ele todos pecaram.” 1

b) São Bernardo (1140): “Só o Senhor Jesus Cristo foi concebido do Espírito Santo, porque era o único santo antes da conceição; com sua exceção, se aplica a todos os nascidos de Adão o que Alguém confessou humilde e verazmente de si: Eis que eu nasci em pecado, e em pecado me concebeu minha mãe.” 2

c) Boaventura, apesar de ser o guia dos teólogos franciscanos, escreveu o testemunho de que “todos os santos que fizeram menção deste assunto com uma só voz asseveraram que a bendita virgem foi concebida em pecado original”.

d) São Tomás de Aquino (século XIII). Este célebre Doutor da Igreja, o mais renomado dos teólogos católicos, foi o paladim dominicano na controvérsia contra a Imaculada Conceição. Em sua famosa obra Suma Teológica, parte III, pergunta XXVII, diz: “Santificação da Bem Aventurada Virgem Maria”, art. II. “A bem Aventurada Virgem foi santificada antes de receber vida?” Respondemos que a santificação da bem-aventurada Virgem não pode entender-se antes de receber a vida…se a bem-aventurada Virgem houvesse sido santificada de qualquer modo antes de receber a vida, nunca teria incorrido na mancha do pecado original; e, portanto, não teria necessitado da redenção e da salvação, que é por Cristo, de quem se diz: …porque ele salvará o seu povo dos seus pecados (Mat. 1.21).

Mas é inconveniente que Cristo não seja o salvador de Todos os homens como se diz (I Tm. 4.10). Logo, segue-se que a santificação da bem-aventurada Virgem nunca houvesse sido contagiada do pecado original, isto derrocaria a dignidade de Cristo, que não necessitou ser salvo, como salvador universal, a maior pureza seria a da bem-aventurada Virgem: porque Cristo de maneira alguma contraiu pecado original senão que foi santo em sua mesma conceição segundo o texto (Luc. 1.35)…ao passo que a bem-aventurada Virgem contraiu o pecado original, mas foi purificada dele antes que saísse do seio (materno).”

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(1) Teófilo Gay, Dlcclonârlo de Controversia, Junta Bautista de Publicaciones, Buenos Aires, p. 423.

(2) lbid., p. 423

(3) Santo Agostinho, Enarr. em Salmos 34:3. Rev. Ricardo Federico Littledate,
Razones Sencillas contra los Errares Y Ias Innovaciones dei Romanismo, p. 16.

(4) Juan Rosanas, S.1. Historia de los Dogmas, iii, Ed. cultural, Buenos Aires, 1945, pp. 173 e 174.

(5) Enciciopedia de ia Reilgión Católica, Art. “Concepciõn lmmaculada de lá Santissima Virgen”.

B) Rejeitada por vários papas 

(1) leão I (440-461) diz: “Assim como nosso Senhor não encontrou a ninguém isento de pecado, assim também veio para o resgate de todos” 3 Se fosse certa a imaculada conceição de Maria, esta afirmação papal seria falsa.

(2) Gregório, o Grande, cuja sabedoria todos reconhecem, comentando a passagem de Já 14:4, expressa que Jesus Cristo é o único que não foi concebido de sangue impuro e o único também que foi verdadeiramente puro em sua carne. Não faz menção de Maria.

(3) lnocêncio III diz: “Eva foi formada sem culpa, e engendrou na culpa; Maria foi formada na culpa, e engendrou sem a cuIpa.”1

2. Necessita de uma Base Bíblica

Apesar de a fórmula dogmática declarar que esta doutrina foi revelada por Deus, o certo é que nas páginas das Sagradas Escrituras não há nem a mais leve insinuação de que a mãe do Senhor houvesse sido concebida imaculadamente. O testemunho positivo da Bíblia faz, sim, impossível a afirmação deste dogma.

a. Nos Evangelhos


Uma leitura cuidadosa das 23 passagens do Novo Testamento que direta ou indiretamente aludem a Maria nos permitirá ver que apesar de, nos Evangelhos, a posição dela não ser em alto grau especial ou proeminente, sua distinção, no entanto, se faz ostensiva em seu caráter humilde e piedoso. Sua pessoa nos está apresentada dentro de um limite impressionantemente humano. Ela é mãe solicita, esposa fiel e uma israelita temente a Deus. Os relatos evangélicos não a rodeiam de adornos artificiosos; não lhe rendem homenagem desnecessária nem a recomendam como salvadora ou milagreira. Seu maior favor recebido foi o de haver sido escolhida do Senhor para abrigar em seu seio virginal a forma humana do Verbo eterno; seu maior gozo foi haver-se submetido voluntariamente aos desígnios misteriosos de Deus; e sua maior glória foi haver crido em seu próprio Filho Jesus como o Salvador de sua alma. Se ela não cometeu pecado durante sua vida terrena, é de todo ponto de vista incompreensível o silêncio absoluto que sobre tal coisa guardam os Evangelhos. Por que no caso de Jesus as Escrituras são claras com respeito a sua perfeição moral, mas no caso de sua mãe guarda silêncio? A razão é óbvia.
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(1) ibid., p. 425.

b. Na doutrina de que todos os homens são pecadores

A Bíblia é igualmente clara em mostrar a doutrina da universalidade do pecado. Adão, o progenitor do gênero humano, pecou, e pelas leis da herança ele transmitiu a todos os seus descendentes a natureza pecaminosa e as conseqüências nefastas da transgressão. “Eis que eu nasci em iniqüidade, e em pecado me concebeu minha mãe” (Salmos 51:5). “Pois não há homem justo sobre aterra, que faça o bem, e nunca peque” (Ecl. 7:20). “Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rom. 3:23; 5:12).

Nas passagens citadas não se indica a isenção de Maria; logo, ela, como descendente de Adão, participou não somente das conseqüências da queda, senão do pecado original mesmo. As palavras de Maria, em seu cântico em Lucas 1:46-55, confirmam esta tese quando ela exclama: “A minha alma engrandece ao Senhor; e meu espírito exulta em Deus, meu Salvador.”
Por que Maria chamou a Deus seu Salvador? Porque ela, da mesma maneira que todos os homens, necessitou salvar-se e obter a vida eterna pelo arrependimento e a fé. Em Mateus 1:21 lemos a mensagem dada pelo anjo a José “…ela dará à luz um filho, a quem chamarás JESUS; porque ele salvará o seu povo dos seus pecados.” Segundo isto, e sendo que Jesus era Deus mesmo velado em carne, o próprio filho de Maria foi seu Salvador, não no sentido de que a houvesse preservado da mancha do pecado original e de todo pecado atual, pois que não se trata disto, senão redimindo-a, igual a todos, da condenação eterna.

Estas notas, no entanto, não querem dizer que a Virgem Maria tenha sido uma mulher perversa e desprezível; de todos os pontos de vista, foi ela uma senhorita honesta, uma dama religiosa e santa. Bem podemos tomá-la como exemplo de virtudes e dar graças a Deus pela inspiração que sua vida produz em nós. Não se pode, porém, passar deste limite, sem correr o risco de cair no meramente especulativo e, o que é ainda pior, em terreno inseguro e falso.

3. Necessita de Suficiente Base Racional
Ao ler as obras literárias dedicadas a exaltar Maria, logo se percebe que é neste ponto de supostas razões lógicas que os defensores do dogma da Imaculada fazem apoiar com mais força e mais confiança sua tese concepcionista. Esgrimem com habilidade o argumento da conveniência, isto é, que pelo fato de que Maria foi a escolhida para ser a mãe do Senhor, ou de Deus, como prefere dizê-lo a fraseologia romanista, era então muito conveniente sua imaculada conceição; e ainda as outras crenças sobre Maria, como a da Assunção se fazem depender desta mesma conveniência ou suposição.

É fácil ver, no entanto, que esta asseveração, bem intencionada, certamente, não deixa de ser um simples desejo ou uma conjectura piedosa. O fato de uma coisa parecer-nos mui conveniente ou desejável não prova desde logo que o seja. Seria conveniente que ninguém adoecesse, mas a realidade é outra. Se deduz também que como Deus é Onipotente, foi fácil para ele realizar o milagre da imaculada conceição de Maria. A este respeito cita-se o famoso silogismo PotuIt DecuIt Cesit (“Pôde e quis, logo, o fez”). Não se nega, está claro, que para Deus não há nada impossível, mas tampouco isto prova que o dogma da Imaculada Conceição descanse sobre uma base real. Deus pode haver criado todas as coisas em um segundo de tempo, mas isto não é uma evidência de que assim foi. Resulta, por conseguinte, extremamente perigoso o definir uma doutrina sobre o inseguro argumento da conveniência.

Mas ainda existe algo mais: de um ponto de vista racional, pode-se considerar como improvável a imaculada conceição de Maria, devido às seguintes razões:

a. Porque teria que haver uma conceição Imaculada em cadeia
Se para Jesus ser imaculado fosse necessário que sua mãe também o houvesse sido, logicamente entende-se que as mesmas razões existem para que houvessem sido imaculadas a mãe de Maria e sua avó, e assim sucessivamente, até chegar a Eva. Esta é uma conseqüência teórica que, ainda que repugne ao bom sentido, temos que admitir, se aceitamos como válidas as suposições apologéticas dos concepcionistas marianos.

b. Porque a santidade de Jesus não dependo de sua relação com sua mãe


Jesus foi santo, mesmo não o tendo sido sua mãe, pois ele não recebeu sua santidade por herança ou associação. Ele foi sem mácula alguma, em primeiro lugar, porque ele não foi concebido de varão, senão por obra do Espírito Santo; e, em terceiro lugar, porque era Deus encarnado, apesar de nunca ter usado de sua deidade para ganhar a vitória, vencendo apenas como homem. Não se trata de uma santidade a ele concedida em forma mecânica e milagrosa; a santidade do Senhor foi o ambiente natural de uma vida que, além de sua origem divina, se submeteu totalmente à influência e direção do Espírito de Deus.


c. Porque se desumaniza a Maria

Um derivado da tese concepcionista é que, ao pretender que Maria tenha sido imaculada em sua conceição e necessariamente em sua vida também, quer dizer que ela nunca chegou a ser, propriamente falando, uma criatura humana nem viveu uma verdadeira vida humana. Este dogma erradica a Virgem da família humana, a reduz a um quase bosquejo de personalidade humana e faz de sua vida um fantasma. A despoja, realmente, do fundamento de sua verdadeira grandeza, qual seja, a de que, sendo ela uma criatura como todas, embelezou, no entanto, seu caráter e imortalizou seu nome com as virtudes de sua abnegação, de sua piedade e de sua obediência. Os Evangelhos nos apresentam uma Maria humana, santa e humilde por esforço próprio, o que reclama admiração e respeito, e não uma Maria divinizada e artificialmente sem pecado.

V. EXEGESE DEFEITUOSA


Interpretação de Gênesis 3:15 e Lucas 1:28

Foi dito anteriormente que estas duas passagens são citadas pelos teólogos católicos como o baluarte bíblico a favor da Imaculada Conceição, apesar de admitirem que o argumento o é por implicação.

Esta tese necessita de base em duas coisas: na tradução de ambas as referências bíblicas e nas afirmações que dela derivam. Este erro de tradução aparece primeiro na Vulgata Latina, da qual, até bem poucos anos, se faziam todas as versões católicas da Bíblia.

a) Gênesis 3.15


A versão em espanhol de Torres Amat traduz Gênesis 3:15 assim: “Eu porei inimizade entre ti e a mulher, e entre tua semente e a sua semente; esta te ferirá na cabeça, e tu lhe ferirás no calcanhar.” Quem esmagará a cabeça da serpente, isto é, do diabo? Tanto a tradução como a exegese católicas dão a entender que a promessa de vitória sobre o inimigo das almas aqui é dada à mulher, que não é outra senão a Virgem Maria. Em nota de rodapé desta passagem, Torres Amat explica: “ou então: Quebrantará tua cabeça a mulher, que, cheia de graça, dará à luz o Filho de Deus.”

O pronome “ela”, nesta passagem, é impossível que possa referir-se a uma mulher, sendo que no original hebraico é “ele”, pronome demonstrativo no gênero masculino, e, portanto, o original hebraico requer a tradução Ipsum e não Ipsa como traduz a Vulgata. Não se refere, pois, à mulher, e, sim, à sua semente, que é Cristo. As versões protestantes da Bíblia traduzem corretamente este versículo. Por exemplo, a Revisão de 1960 diz: “Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua descendência e a sua descendência; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” È justo admitir, no entanto, que as recentes versões católicas da Bíblia, feitas pela primeira vez diretamente das línguas originais, corrigiram o erro da tradução apontada. Nácar-Colunga, por exemplo, traduz assim: “Ponho perpétua inimizade entre ti e a mulher, e entre tua linhagem e a sua: este te esmagará a cabeça, e tu morder-lhe-ás o calcanhar.”

A análise lingüística e gramatical de Gênesis 3:15 como sua exegese dentro do contexto bíblico, nos leva, por conseguinte, a uma clara e lógica conclusão: que é a semente da mulher (Jesus Cristo), e não, a mulher mesma (neste caso, Maria, acerca da qual evidentemente é uma referência profética) quem esmagaria, isto é, que derrotaria completamente o diabo. Portanto, Jesus Cristo fez precisamente isso, não só através de sua vida sem mácula, senão e especialmente por meio de sua morte vicária na cruz, o que é ensinamento nítido do Novo Testamento. Hebreus 2:14: “Portanto, visto como os filhos são participantes comuns de carne e sangue, também ele semelhantemente participou das mesmas coisas, para que pela morte derrotasse aquele que tinha o poder da morte, isto é, o Diabo.” 1 João 3:8: “Quem comete pecado é do Diabo; porque o Diabo peca desde o principio. Para isto o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do Diabo.” Em contrário, não há uma só passagem no Novo Testamento em que se aplique a Maria o cumprimento da vitória completa sobre Satanás, anunciada por Jeová Deus em Gênesis 3:15.

b) Lucas 1.28


As versões católicas da Bíblia traduzem a passagem de Lucas 1:28 assim: “Entrando, pois, o anjo onde esta estava, disse-lhe: Deus te salve, cheia de graça! O Senhor é contigo!” (Nácar-Colunga). Novamente temos aqui um erro de tradução, com o qual se quer justificar todas as chamadas “glórias de Maria”. A frase “cheia de graça” não é exatamente o que diz o grego original do Novo Testamento, senão que se trata do particípio perfeito do verbo xaritoo, que significa “favorecida”, “ser o objeto de um gracioso convite” (literalmente, agraciada). A Revisão de 1960 traduz corretamente: “E entrando o anjo onde ela estava, disse: Salve agraciada; o Senhor é contigo.” A mesma nota que aparece no rodapé da página em Nácar-Colunga é uma cândida profissão do verdadeiro sentido da frase em grego, de modo que a tradução da dita frase no texto aludido resulta tendenciosa. “Cheia de graça” é a tradução que dão as antigas versões ao particípio “agraciada”, “gratificada” em sumo grau. O anjo emprega este particípio à maneira de nome próprio, o que aumenta a força de seu significado. A piedade e a teologia cristãs afastaram daqui todas as exaltações de Maria. A análise lingüística superficial demonstra, por conseguinte, que não se trata da concessão de alguma virtude especial para não pecar, senão simplesmente de um favor, de uma graça imerecida, qual é a de ser a mãe do Salvador.

Em Efésios 1:6 aparece este mesmo verbo no sentido que apontamos. E em Atos 6:8 se emprega a frase “cheia de graça”, pois diz:

“Ora, Estêvão, cheio de graça e poder (‘cheio de graça e de virtude’, Nácar-Colunga), fazia grandes prodígios e sinais entre opovo.” De modo que, se da frase (ainda que exagerada) de Gratia plena quer-se deduzir tantos privilégios, deve-se fazer de Estêvão e todos os fiéis participes iguais dos mesmos (Atos 4:33; II Cor. 9:8).

Também, ao anunciar o anjo Gabriel a Zacarias a concepção de João, o Batista, o precursor de Jesus, empregou palavras de que, seguindo o método de interpretação romanista, teríamos que deduzir que João, o Batista, foi sem pecado mesmo desde sua concepção, sendo que o anjo disse: “Não beberá vinho, nem bebida forte; e será cheio do Espírito Santo já desde o ventre de sua mãe” (Luc. 1:15, Torres Amat). Assim sendo, sabemos que não é tal o caso aqui, tampouco o é, e com menos base escritural ainda, na saudação do anjo a Maria.

VI. A IMACULADA CONCEIÇÃO E O CONCÍLIO VATICANO II

No “Esquema sobre a Constituição Dogmática da Igreja”, no Capitulo VIII, os Pais conciliares trataram sobre o tema “O Papel da Bendita Virgem Maria, Mãe de Deus, no Ministério de Cristo e da Igreja”. Propriamente falando, a discussão não girou em torno do dogma da Imaculada Conceição. No entanto, a redação do capitulo não deixa margem a dúvidas de que o Concílio confirmou o dogma Mariano. Afirmações, como as seguintes, o demonstram: “Devido a este dom de graça sublime, ela sobrepassa a todas as demais criaturas, tanto no céu como na terra.” (1) “Não é de estranhar, então, que o uso prevaleça entre os santos Padres, pelo qual eles chamaram a mãe de Deus inteiramente santa e livre de toda mancha de pecado, formada pelo Espírito Santo em uma classe de nova substância e nova criatura.”(2) “Adornada desde o primeiro instante de sua conceição com os esplendores de uma santidade inteiramente única, a Virgem de Nazaré é, pelo mandato de Deus, saudada por um anjo mensageiro como ‘cheia de graça’.” (3) “Corretamente, portanto, os santos Padres a vêem como usada por Deus não meramente em uma maneira passiva, senão como cooperando na obra da salvação humana através de fé e obediência livres.” (4) “Esta união da Mãe com o Filho na obra da salvação se manifestou desde o tempo da concepção virginal de Cristo até sua morte.” (5) “Finalmente, preservada e livre de toda culpa de pecado original, a Virgem Imaculada foi levada em corpo e alma à glória celestial, ao terminar sua peregrinação terrenal.” (6)

Realmente nos surpreende esta linguagem tão desautorizada e leviana. Isto quer dizer, então, que Roma não cedeu nada no que concerne à Mariologia. As posições continuam iguais.
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(1, 2, 3, 4, 5, 6) Walter M. Abbott, S.J.: The Documenta of Vaticano II – Guild Press:

CONCLUSÃO


Concluímos, pois, que o dogma da Imaculada Conceição de Maria é insustentável porque ele não tem nenhum valor prático para a teologia cristã ou para a salvação do homem; e porque, em lugar de este dogma nos aproximar da fonte pura do evangelho e da suprema pessoa de Jesus Cristo, antes nos afasta, para fazer-nos incorrer no pecado de “honrar à criatura, antes que ao Criador, o qual é bendito pelos séculos”.


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